quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Na bíblia, textos desfavoráveis às mulheres...

Falando, ainda, em resgate de valores, moral e bons costumes (proposto pela Lei Estadual 6394/2013), creio ser necessário indagar o que deveria ser resgatado e de que ponto do passado: "Resgatar o que?",  "moral e bons costumes" ditados pela Bíblia? O falso moralismo, a falsa espiritualidade de pessoas mentalmente doentes e que perseguem aqueles que são diferentes?

É preciso lembrar que todos os que levem a Bíblia ao pé da letra, inclusive as próprias mulheres, teriam que retroagir no tempo e abdicar de direitos recém conquistados pois é fato que, para aqueles que enxerguem a Bíblia apenas como livro religioso, a consequência será desconsiderar o contexto histórico de suas preleções... E não se admitirá exclusões; ou seja, tudo precisaria ser acatado, obedecido...Porque tudo teria sido "Divinamente inspirado".

Assim, acomodar uma consciência forjada por conceitos bíblicos ultrapassados ao modo de vida moderno é uma experiência, por certo, bastante complicada; principalmente porque a reflexão é um hábito de poucos; a tendência é que as pessoas sigam "macaqueando" o que ouvem, em pseudos estudos bíblicos.

Um estudioso da bíblia que não tenha cursado, ao menos, o ensino médio... Seria um estudioso? Mas o que se afirma por aí é que "Deus não escolhe os capacitados mas capacita os escolhidos.". Para os que reduzem, assim, as próprias expectativas, o preconceito contra as mulheres, ditas pecadoras, pode prosperar. E a pretexto de qualquer conflito doméstico, essas "verdades" recalcadas, acomodadas no fundo das mentes, eclodem:

Efésios 5
22 Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor;
23 porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o Salvador do corpo.
24 Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo a seus maridos.
Timóteo 2
11 A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição.
12 Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio.

Colossenses, 3

18 Vós, mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém no Senhor....
Deuteronômio, 22
20 Se, porém, esta acusação for confirmada, não se achando na moça os sinais da virgindade,
21 levarão a moça à porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão até que morra; porque fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai. Assim exterminarás o mal do meio de ti.
22 Se um homem for encontrado deitado com mulher que tenha marido, morrerão ambos, o homem que se tiver deitado com a mulher, e a mulher. Assim exterminarás o mal de Israel.
23 Se houver moça virgem desposada e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela,
24 trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis até que morram: a moça, porquanto não gritou na cidade, e o homem, porquanto humilhou a mulher do seu próximo. Assim exterminarás o mal do meio de ti.
Vê-se, então, que esses conceitos parecem estar em perfeita sintonia com o comportamento de homens que se julgam proprietários de suas mulheres, que sentem o peso de uma rejeição como uma humilhação inadmissível, que acreditam que mulheres fazem por merecer ataques sexuais porque os provocam. A aplicação de preceitos bíblicos à vida cotidiana incita a violência contra as mulheres, assim como incita a intolerância religiosa: em Manaus, alunos evangélicos recusaram-se a fazer trabalho sobre cultura afro-brasileira.

Em Nova Délhi, na Índia, a violência contra a mulher é cultural e religiosa (assim como em países muçulmanos) e uma mulher, ainda que acompanhada, é ostensivamente assediada: é o que nos conta o colunista Francisco Bosco, em artigo sob o título "Misoginia na Índia".

Então, é preciso estar atento pois a misoginia também habita entre nós. E, todos os que buscam viver de forma verdadeiramente cristã ("ama ao próximo como a ti mesmo...") devem olhar de forma crítica iniciativas que, originadas de grupos religiosos ou de pessoas que os representem, no Parlamento, tenham por objetivo infiltrar, no seio da administração pública, "valores éticos/morais/espirituais" identificados com uma determinada religião.

Afinal, ninguém almeja, por aqui, viver em uma ditadura teocrática, ninguém pretender renunciar às liberdades conquistadas. E, se há mulheres desejosas de receber o tratamento prescrito no texto biblico aqui referido, o melhor é buscar um outro tratamento: o psiquiátrico.

E, como vem acontecendo corriqueiramente, mais uma crueldade perpetrada contra uma mulher, mais uma vingança torpe de um ex-marido que, provavelmente, não será refletida em estatísticas oficiais de modo a que se possa perceber e tratar a questão como ela merece ser tratada: como prioridade absoluta, com objetivos claros de combater essa misoginia escancarada e incentivada por falsos moralismos e falsa espiritualidade, que resulta em homens que tem ódio das mulheres.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Liberdade irresponsável

Uma menina de 14 anos, após ter sido estuprada pelo padastro, foi morar com o pai que também a estuprou; e engravidou. É o que relata matéria do G1. A mãe alega não fazer ideia do que vinha acontecendo embora a filha tenha relatado à Assistente Social que sofria o abuso desde os onze anos de idade. Tudo muito chocante nessa matéria, inclusive o fato de a mãe da menor ter outros oito filhos!

Esse fato remete às questões a que me referi nas postagens anteriores: resgate de valores (resgatar o quê?), crise na família, lei da moral e dos bons costumes, violência contra as mulheres...

Há uma única explicação: desrespeito à mulher, à criança, reiterado desde datas imemoráveis... É o que revela o estudo da História. A História, inclusive a recente, mostra o costume de soldados estuprarem mulheres. Na guerra que levou à desintegração da antiga Iugoslávia (Sérvia, Kosovo, Bósnia, Croácia), houve violação sistemática com o propósito de engravidar as mulheres e promover "limpeza étnica"! Quem se interessar sobre o tema leia o ensaio de Fernanda Ribeiro de Azevedo  Crimes sexuais e as guerras.

Mas, não resta dúvida de que o progresso chegou: esses atos, hoje, são tratados como crime, em oposição ao passado recentíssimo onde a mulher, quando se dirigia a uma delegacia para prestar queixa, ouvia a seguinte piada nojenta: "Quem guiou o cego?". Foi esse tratamento agressivo que motivou a criação das Delegacias de Mulheres, na década de 80.

No entanto, na  notícia a que me refiro, no início deste texto, há um aspecto que merece relevo: a mãe da jovem violada tem outros oito filhos! Essa mãe não faz jus à liberdade de que desfruta, a duras penas conquistada pelas mulheres da minha geração. Não só não cuidou da filha de 14 anos mas colocou mais oito crianças no mundo. E, ainda ousa dizer que a filha não está traumatizada!

Nem todas as pessoas tem perfil para ser mãe, ou pai, embora a maioria seja dotada dos "equipamentos" necessários à concepção. Assim, as igrejas que fazem campanha antiaborto e anti-métodos contraconceptivos deveriam, também, se encarregar da educação dessas pessoas identificando-as na multidão e impedindo que botassem tantos inocentes no mundo, irresponsavelmente. Não basta pregar, bradar, amaldiçoar.... É preciso se comprometer. Afinal, se esses grupos se julgam, assim, tão poderosos, emissários diretos de Deus na defesa da vida, por que não a defendem, efetivamente? Por que permitem que aqueles que escaparam do aborto se tornem, no futuro, vítima da violência praticada pelos próprios pais?

Em se tratando de "moral e bons costumes", nada é o que parece, nada é tão simples; e tudo passa pela educação.  Por isso mesmo, o tema pode ser uma bandeira perigosa nas mãos de pessoas religiosas com pouca instrução e tendentes ao fanatismo. É uma discussão que não pode ser adstrita à noção de moralidade que é pregada nos púlpitos por hipócritas que atribuem os males modernos às conquistas femininas.

Resgatar o quê?

A palavra "resgatar" quando usada na discussão de questões que envolvem os problemas familiares da atualidade, principalmente em discursos proferidos por religiosos, é carregada de preconceitos. Procura-se fazer crer que, no passado, as famílias eram modelos de respeito e afeto e que, desde então, quase tudo teria mudado para pior.

Uma mulher jamais deveria compartilhar de semelhante visão, é um verdadeiro tiro no pé. Mas, lamentavelmente, aderem a essas frases de efeito destituídas de verdade e que não resistem à menor análise: é tudo uma deslavada mentira.  Afirmo, não só por ter levado a sério os meus estudos de História, ainda no antigo primeiro grau mas, também, por ter vivido a minha infância em parte da década de 50 e 60, ou seja, testemunhei muita coisa.

Senão, vejamos:

  • as mulheres eram tratadas com desprezo e muitas proibidas de ir à escola;
  • era frequente mulheres serem trancadas em casa pelos maridos, quando estes saiam para trabalhar;
  • a mulher era obrigada a se manter virgem até o casamento e, se não casasse, continuaria virgem pelo resto da vida;
  • o homem, mal entrava na adolescência, era obrigado a se relacionar com prostitutas;
  • a mulher, com alguma frequência, era ludibriada pelo namorado cedendo a chantagens emocionais e, ao aceitar relações sexuais antes do casamento, logo era repudiada;  
  • a mulher que cedesse ao namorado, ou noivo, abandonada por ele, se ficasse grávida  ou se fosse descoberta era expulsa de casa; 
  • uma mulher, se expulsa de casa por ter perdido a virgindade, muitas vezes se via obrigada à prostituir-se para sobreviver pois não tinha formação para o trabalho (as mulheres eram educadas para o casamento);
  • os homens, em geral, frequentavam prostíbulos na vigência do casamento e mantinham amantes e, até, segundas famílias com filhos, cachorro, papagaio... E tudo era aceito e acobertado na hipocrisia reinante;
  • até a década de 40, a mulher sequer tinha direito ao voto, ou seja era uma subalterna!; 
  • ares de mudança surgiram no final dos anos 50 e as mulheres começaram a ingressar no mercado de trabalho, muito timidamente pois, nessa época, a maioria das profissões era vedada às mulheres: elas podiam ser enfermeiras, professoras e assistentes sociais;
  • o crime de violência sexual não era visto como tal pois as mulheres que a sofriam, ainda que crianças, eram tidas como únicas responsáveis pela própria desgraça, provocadoras, imorais...; 
  • paro de enumerar, aqui, não por falta de descalabros somente para finalizar a postagem... Mas, antes, recuemos ao século XIX: todos sabemos que até o ano de 1888, nosso sistema econômico assentava-se na escravidão dos negros traficados da África e que as famílias de negros não eram tidas como tais! Crianças negras eram arrancadas de suas mães e vendidas e as mulheres negras eram sistematicamente estupradas! 
Com que então, o antigo modelo de família era perfeito e precisa ser resgatado??!!! quá, quá, quá, quá, quá, quá ...... 

Eu tive a sorte de nascer em uma família moderna para os padrões da época. Fui incentivada a estudar e a ter uma profissão. Lia muito e, desde cedo, compartilhava a leitura de jornais e revistas com meu pai, um homem bem informado e politizado. Minha mãe lia clássicos da literatura brasileira, uma dona de casa simples mas com a mente aberta. O interessante é que, ambos, tinham somente o antigo curso primário! E éramos muito pobres. 

Meus pais eram diferentes e, para honrar o que eles foram, vivendo contrariamente à maioria, falo a verdade.  Não podemos romantizar o passado. O que podemos e devemos fazer é melhorar o presente. 

Não há o que resgatar! Precisamos olhar detidamente os fatos que foram se desencadeando a partir das salutares mudanças do século XX que, embora bem vindas, tornaram a nossa sociedade extremamente complexa. Pagamos o preço de uma urbanização acelerada provocada pelo chamado êxodo rural, pagamos o preço de um elitismo corrupto que propiciou o abandono e a violência nas periferias das grandes cidades brasileiras. E os modelos de famílias, antigos ou modernos, não são os responsáveis por esse estado de coisas.

Temos uma questão política mas, infelizmente, há quem queira enxergar tudo sob um prisma religioso: tudo seria falta de Deus na vida das pessoas, tudo se resume e se explica na frase "são sinais dos tempos".

Porém, aos olhos de quem se permita examinar os fatos um pouco mais atentamente, o mundo mudou para melhor. Acredito nisso, por isso me repito e relembro o que postei no dia 02/01/2012 e , também, em 2010: No meu tempo, no seu tempo....

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A "Lei da moral e dos bons costumes".

Inevitável falar sobre a ação de políticos inescrupulosos, inevitável desabafar indignação e revolta quando, rotineiramente, a TV exibe a precariedade dos serviços prestados pelo Estado: calamidades provocadas por secas e por enchentes, se repetindo ano após ano; transporte coletivo incompatível com as demandas; ônibus abarrotados e mal conservados e rodovias idem; mortes nas estradas e trabalhadores gastando quatro horas por dia no deslocamento casa-trabalho...E nem se fale da precariedade dos sistemas de saúde e de educação.

É nesse contexto que uma deputada estadual do Rio de Janeiro ligada a um grupo religioso, possivelmente bem intencionada, propõe uma lei que visa resgatar valores morais. Soa bastante irônico... Primeiro, porque é à sombra do Poder Público que prosperam os maus exemplos... Segundo, porque somente a educação é capaz de suscitar "...Valores Morais Sociais, Éticos e Espirituais...". Será que a Deputada desconhece o papel que cabe à educação nesse terreno?

Não seria demais lembrar que o Art. 208 da Constituição Federal (a seguir transcrito) garante ao cidadão, desde 1988, o acesso à educação. Por quê, então, não se propõe cobrar o efetivo cumprimento daquilo que já está previsto? Para quê criar arremedos em paralelo?

O leitor que tiver tempo e curiosidade, compare o objetivo texto constitucional com o texto inócuo da Lei estadual nº 6394/2013, recentemente aprovada pelo Governador Sérgio Cabral. Políticos precisam trabalhar de verdade! Fazer de conta, chover no molhado? É coisa de estelionatário.

"Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Emenda 59, DE 2009)
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. (Emenda 59, DE 2009).

§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola."

Faria melhor, a Deputada, se olhasse os direitos de cidadãos cariocas, sistematicamente violados, quando lhes falta a saúde, a educação, a segurança, o transporte... Mas, o que se nota é que o Poder Público, em todas as esferas, negligente no cumprimento de seus deveres e eficientíssimo no sistema de arrecadação, ainda se furta ao atendimento de reclamações na Justiça, postergando, postergando, e postergando para, jamais, pagar o que deve ao cidadão reclamante. É ou não é imoral?

Lamentavelmente, a palavra "moral",  pronunciada por indivíduos desejosos de doutrinar, quase sempre é no sentido da conduta sexual alheia, algo que é do âmbito da privacidade de cada um!

Homens, mulheres, não importa se héteros ou gays, são humanos. Mas há aqueles que parecem enxergar somente a dimensão sexual das pessoas, uma espécie de ideia fixa!

Não faz muito tempo essa Deputada, preocupada com a moral e os bons costumes, declarou-se casta,  em estado de abstinência... Espero que suas "boas intenções", com esse "programa de resgate da moral",  não inclua o comportamento sexual alheio.