terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Resgatar o quê?

A palavra "resgatar" quando usada na discussão de questões que envolvem os problemas familiares da atualidade, principalmente em discursos proferidos por religiosos, é carregada de preconceitos. Procura-se fazer crer que, no passado, as famílias eram modelos de respeito e afeto e que, desde então, quase tudo teria mudado para pior.

Uma mulher jamais deveria compartilhar de semelhante visão, é um verdadeiro tiro no pé. Mas, lamentavelmente, aderem a essas frases de efeito destituídas de verdade e que não resistem à menor análise: é tudo uma deslavada mentira.  Afirmo, não só por ter levado a sério os meus estudos de História, ainda no antigo primeiro grau mas, também, por ter vivido a minha infância em parte da década de 50 e 60, ou seja, testemunhei muita coisa.

Senão, vejamos:

  • as mulheres eram tratadas com desprezo e muitas proibidas de ir à escola;
  • era frequente mulheres serem trancadas em casa pelos maridos, quando estes saiam para trabalhar;
  • a mulher era obrigada a se manter virgem até o casamento e, se não casasse, continuaria virgem pelo resto da vida;
  • o homem, mal entrava na adolescência, era obrigado a se relacionar com prostitutas;
  • a mulher, com alguma frequência, era ludibriada pelo namorado cedendo a chantagens emocionais e, ao aceitar relações sexuais antes do casamento, logo era repudiada;  
  • a mulher que cedesse ao namorado, ou noivo, abandonada por ele, se ficasse grávida  ou se fosse descoberta era expulsa de casa; 
  • uma mulher, se expulsa de casa por ter perdido a virgindade, muitas vezes se via obrigada à prostituir-se para sobreviver pois não tinha formação para o trabalho (as mulheres eram educadas para o casamento);
  • os homens, em geral, frequentavam prostíbulos na vigência do casamento e mantinham amantes e, até, segundas famílias com filhos, cachorro, papagaio... E tudo era aceito e acobertado na hipocrisia reinante;
  • até a década de 40, a mulher sequer tinha direito ao voto, ou seja era uma subalterna!; 
  • ares de mudança surgiram no final dos anos 50 e as mulheres começaram a ingressar no mercado de trabalho, muito timidamente pois, nessa época, a maioria das profissões era vedada às mulheres: elas podiam ser enfermeiras, professoras e assistentes sociais;
  • o crime de violência sexual não era visto como tal pois as mulheres que a sofriam, ainda que crianças, eram tidas como únicas responsáveis pela própria desgraça, provocadoras, imorais...; 
  • paro de enumerar, aqui, não por falta de descalabros somente para finalizar a postagem... Mas, antes, recuemos ao século XIX: todos sabemos que até o ano de 1888, nosso sistema econômico assentava-se na escravidão dos negros traficados da África e que as famílias de negros não eram tidas como tais! Crianças negras eram arrancadas de suas mães e vendidas e as mulheres negras eram sistematicamente estupradas! 
Com que então, o antigo modelo de família era perfeito e precisa ser resgatado??!!! quá, quá, quá, quá, quá, quá ...... 

Eu tive a sorte de nascer em uma família moderna para os padrões da época. Fui incentivada a estudar e a ter uma profissão. Lia muito e, desde cedo, compartilhava a leitura de jornais e revistas com meu pai, um homem bem informado e politizado. Minha mãe lia clássicos da literatura brasileira, uma dona de casa simples mas com a mente aberta. O interessante é que, ambos, tinham somente o antigo curso primário! E éramos muito pobres. 

Meus pais eram diferentes e, para honrar o que eles foram, vivendo contrariamente à maioria, falo a verdade.  Não podemos romantizar o passado. O que podemos e devemos fazer é melhorar o presente. 

Não há o que resgatar! Precisamos olhar detidamente os fatos que foram se desencadeando a partir das salutares mudanças do século XX que, embora bem vindas, tornaram a nossa sociedade extremamente complexa. Pagamos o preço de uma urbanização acelerada provocada pelo chamado êxodo rural, pagamos o preço de um elitismo corrupto que propiciou o abandono e a violência nas periferias das grandes cidades brasileiras. E os modelos de famílias, antigos ou modernos, não são os responsáveis por esse estado de coisas.

Temos uma questão política mas, infelizmente, há quem queira enxergar tudo sob um prisma religioso: tudo seria falta de Deus na vida das pessoas, tudo se resume e se explica na frase "são sinais dos tempos".

Porém, aos olhos de quem se permita examinar os fatos um pouco mais atentamente, o mundo mudou para melhor. Acredito nisso, por isso me repito e relembro o que postei no dia 02/01/2012 e , também, em 2010: No meu tempo, no seu tempo....

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